Reconstruir o Interior destruindo a
Interioridade: para uma estratégia activa de inclusão de actores
Interior: da marginalidade geográfica
à marginalidade sócio-económica
Qual a realidade que se esconde, hoje,
por detrás da expressão, tão utilizada como imprecisa, de «Interior»? A
diversidade de discursos que o invocam e a variedade de contextos em que o
fazem dificultam qualquer tentativa de definição. Apesar disso, parece
legítimo afirmar que a «interior» e a «interioridade» se associam basicamente
três elementos: uma situação (subdesenvolvimento), uma causa principal
(isolamento e dificuldades de acesso às áreas mais dinâmicas, localizadas no
litoral), uma consequência particularmente grave (a desertificação,
considerada nas suas várias componentes). Envolvendo estes três elementos
surge um discurso marcado por uma cultura de fatalismo e de apelo à intervenção
assistencialista do Estado.
A sequência dos vários factores
referidos no parágrafo anterior é bem conhecida. A marginalidade geográfica
das regiões do Interior, acompanhada por um visível desinteresse por parte do
poder central por estas áreas, levou a uma persistente sangria de gente,
nomeadamente daqueles que, pelo seu capital escolar, cultural ou mesmo
económico, mais necessários seriam para combater a situação deficitária
existente. Este despovoamento, agravado por uma crise profunda do sector agrícola,
estimulou o abandono dos campos e a concentração das populações em algumas
cidades de média dimensão, contribuindo, lenta mas inexoravelmente, para
romper equilíbrios ambientais, sócio-demográficos e económicos historicamente
sedimentados. Gera-se, assim, um círculo vicioso marginalidade
(geográfica)/despovoamento/abandono dos campos/marginalidade (social e
económica) que conduz ao agravamento das situações de subdesenvolvimento,
sobretudo em termos relativos mas mesmo, nalguns casos, em termos absolutos.
Será esta imagem do «Interior»
adequada aos dias de hoje? A verdade é que o conjunto de elementos invocados
e o modo como são articulados constituem mais uma visão-memória do que
um retrato rigoroso da situação actual. É certo que os vários elementos
sublinhados correspondem a aspectos a levar em conta por todos os que
pretendem contribuir para a requalificação das áreas ditas do Interior. É
certo, também, que o círculo vicioso que foi enunciado continua a operar em
alguns contextos. Importa, no entanto, referir que uma intervenção adequada
nestas parcelas do território nacional implica um entendimento distinto
destas matérias. Trata-se, no essencial, de construir um discurso sobre o
«Interior» que, incorporando as perspectivas anteriores como aspectos
essenciais para a compreensão do processo histórico que conduziu à realidade
actual, saiba, ao mesmo tempo, abrir espaço para a emergência de uma outra
perspectiva.
Interior: de território a processo de
subdesenvolvimento
A «nova análise» do Interior
terá de relativizar ou abandonar alguns aspectos considerados até há pouco
como essenciais, ao mesmo tempo que introduz novas dimensões e reequaciona
algumas das relações de causalidade usualmente apontadas. É que o grande
problema do Interior, hoje, é ter sido «interior» ontem. Por outras palavras,
o subdesenvolvimento que aflige estas áreas do país é mais uma consequência
das situações de isolamento, encravamento e deficiente acessibilidade do
passado do que do presente, mesmo nos casos em que estes condicionalismos
persistem com significado. O alvo de atenção deverá ser, assim, a
marginalidade sócioeconómica resultante do círculo vicioso acima identificado
e essa marginalidade apenas se combate com resultados duradouros se forem
criadas condições realmente propícias à emergência e consolidação de actores
- individuais e colectivos; públicos, associativos e privados - qualificados
e qualificantes. Em suma, um caminho mais promissor, tanto do ponto de vista
analítico como do ponto de vista da formulação de políticas, para reconstruir
o Interior e destruir a interioridade, sugere a necessidade de deslocar a
questão «Interior» para uma outra, a da avaliação das condições de
desenvolvimento em áreas rurais vítimas de processos históricos de
marginalização. Esta inflexão não supõe o desaparecimento da
interioridade como condicionalismo físico relevante. Supõe, isso sim, que a
prioridade de actuação deve orientar-se para a alteração das condições
estruturais de desenvolvimento, as quais apenas parcialmente se articulam,
positiva ou negativamente, com questões de acessibilidade; supõe, igualmente,
colocar as pessoas, as instituições e as organizações no centro do debate,
porque são elas que estimulam, constroem ou, pelo contrário, impedem o
desenvolvimento.
Esta inflexão analítica tem outra
vantagem: a de questionar a natureza da unidade e da especificidade
globalmente atribuídas a estas áreas, na medida em que favorece o
reconhecimento da existência de situações diversificadas no seu seio. O
Interior não corresponde a um espaço homogéneo, mas antes a um território que
partilha dimensões importantes de um passado e de uma memória comuns. De
facto, e do ponto de vista das características actuais, não existe um
Interior, mas vários. E estes diversos «Interiores» não se confinam à faixa
não litoral do país nem dela detêm o monopólio. «Interior» e «litoral»,
enquanto categorias tradicionais associadas a determinadas características
contrastantes (isolamento v. acessibilidade; envelhecimento v. juventude;
declínio v. dinamismo económico; densidade populacional v. desertificação,
etc.), misturam-se no país de tal forma que situações de «Interior» podem
ocorrer junto da faixa litoral enquanto realidades «litorais» emergem, ainda
que pontualmente, nos distritos vizinhos de Espanha. As actuais condições de
desenvolvimento possuem, de facto, uma geografia complexa, que dificilmente
se compadece com as clássicas, e simplistas, dicotomias entre o Norte e o
Sul, o Litoral e o Interior.
Densidade relacional, organização
colectiva inteligente e desenvolvimento territorial
E, no entanto, o Interior existe! Não
pelas razões tradicionalmente invocadas, mas pelo facto de uma vasta faixa
rural que se estende da linha Gerês/Montesinho à serra Algarvia partilhar um
traço distintivo: a existência de espaços extensivamente caracterizados
por uma baixa densidade relacional. Esta é, justamente, a factura mais
pesada que o chamado Interior paga pelo processo de marginalização que sofreu
durante tantas décadas.
Uma população envelhecida e globalmente
pouco qualificada, um tecido empresarial fragmentado e atomizado, um aparelho
administrativo público constituído por entidades demasiado auto-centradas e
sem real poder de decisão, um movimento associativo incipiente, tanto do
ponto de vista das empresas como dos cidadãos: tudo isto reflecte a realidade
de áreas cuja escassez numérica e debilidade quantitativa de actores
constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento. Mais grave, porque mais
decisiva, do que a reduzida densidade física, fruto dos processos de
desertificação, é a incapacidade de os (poucos) actores existentes se
qualificarem e se organizarem colectivamente, partilhando esforços e
informação, produzindo conhecimento, estimulando inovações. É sabido que
soluções organizacionais de tipo sistémico podem contrariar ou mesmo
contornar fragilidades estruturais decorrentes da existência de limiares
populacionais baixos: serviços de carácter ambulatório, movimentos
associativos de base territorial, colaboração inter-institucional e intermunicipal,
participação em redes de cooperação ou estabelecimento de parcerias e de
alianças estratégicas ao nível regional são alguns dos exemplos possíveis
neste domínio. Trata-se, afinal, de caminhar no sentido de encontrar soluções
em que a interacção entre actores constitui não só uma via de combate ao
isolamento mas sobretudo um veículo de constituição de limiares dinâmicos de
massa crítica, uma oportunidade de qualificação dos actores envolvidos, uma
fonte de criatividade colectiva.
Reconstruir o Interior destruindo a
interioridade implica, pois, o desenvolvimento de estratégias activas de
inclusão: mobilizar actores individuais e colectivos, integrá-los em
objectivos comuns e em linhas de rumo estrategicamente partilhadas,
co-responsabilizá-los na missão de criar condições de desenvolvimento para as
regiões onde vivem e actuam. E, nesta tarefa específica, cabe ao Estado um
papel crucial, impulsionando directa e indirectamente estas estratégias ao
mesmo tempo que combate com vigor a cultura assistencialista. Como organizar,
então, de forma mais eficiente os actores do Interior, conferindo a esta
parcela do país a inteligência colectiva que necessita? Se as respostas são
múltiplas, os caminhos a explorar ainda são mais numerosos. Quanto à
preocupação principal, ela está bem identificada: evitar que à interioridade
de ontem, apesar de tudo em vias de resolução, se juntem agora as novas
interioridades decorrentes da exclusão da sociedade da informação e dos
processos de mundialização. Num mundo crescentemente interactivo não existe
lugar para realidades fechadas ou para soluções paroquiais. A opção é, pois,
entre actor e espectador de um espectáculo cujo palco é cada vez menos de
âmbito nacional; e é justamente em relação a esse palco que se definem as novas
centralidades e, por contraste, as novas interioridades. O jogo entre
integração e exclusão não só se tornou mais difícil como mudou de escala.
Pena seria que uma visão limitada de combate à «interioridade de ontem»
levasse a ocultar o perigo das novas interioridades que se adivinham.
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quarta-feira, 6 de novembro de 2013
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